Hoje não vou opinar. Vou apenas deixar o tema da redação da Unicamp 2002. Trabalho:
promoção ou degradação?
O trabalho humano tem assumido múltiplas dimensões ao longo da história. As alternativas que têm sido postas à disposição ou que têm sido negadas aos indivíduos ou à espécie permitem amplo leque de avaliações. Encontra-se tanto uma defesa incondicional das virtudes da vida laboriosa quanto o elogio do ócio ou a defesa de um tempo de trabalho apenas indispensável à sobrevivência.
Levando em conta as pressões históricas, sociais e mesmo psicológicas que condicionam estas visões, exemplificadas nos textos desta coletânea, que permitem uma discussão da questão em seus aspectos contraditórios, escreva uma dissertação sobre o tema:
Trabalho: fator de promoção ou de degradação.
1. No inverno, as formigas estavam fazendo secar o grão molhado, quando uma cigarra faminta lhes pediu algo para comer. As formigas lhe disseram: "Por que, no verão, não reservaste também o teu alimento?" A cigarra respondeu: "Não tinha tempo, pois cantava melodiosamente". E as formigas, rindo, disseram: "Pois bem, se cantavas no verão, dança agora no inverno". (Esopo, Fábulas Completas, trad. de Neide Skolka, São Paulo, Moderna, 1994.)
2. Uma estranha loucura apossa-se das classes operárias das nações onde impera a civilização capitalista. Esta loucura tem como conseqüência as misérias individuais e sociais que, há dois séculos, torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor pelo trabalho, a paixão moribunda pelo trabalho, levada até o esgotamento das forças vitais do indivíduo e sua prole. Em vez de reagir contra essa aberração mental, os padres, economistas, moralistas sacrossantificaram o trabalho. Pessoas cegas e limitadas quiseram ser mais sábias que seu próprio Deus; pessoas fracas e desprezíveis quiseram reabilitar aquilo que seu próprio Deus havia amaldiçoado. (Paul Lafargue, O direito à preguiça, São Paulo, Kayrós, 2 ed., 1980.)
3. Arbeit macht frei (‘o trabalho liberta’, divisa encontrada nos portões do campo de concentração de Auschwitz).
4. Em 1995 o Brasil tinha cerca de 300 mil voluntários engajados no Terceiro Setor (fundações, associações comunitárias etc.) e mais 3 milhões espalhados por organizações religiosas de todo o tipo (espíritas, pastorais da Igreja etc.). A maioria são pessoas que mal se conhecem, mas que se dispõem a ajudar idosos, inválidos, mães sem recursos, crianças abandonadas, de dia ou de noite, em jornadas extras após o trabalho. (Miguel Jorge, "Voluntariado e cidadania", O Estado de S. Paulo, 18/6/2001.)
5. Fotografia de Sebastião Salgado: escadas nas minas de ouro de Serra Pelada. Brasil, 1986. (http://www.terra.com.br/sebastiaosalgado/p_op1/p08w.html)
6. Começa a surgir e a tomar contornos de reivindicação trabalhista o "direito à desconexão": o direito para o assalariado de se desligar – fora do horário de trabalho, nos fins-de-semana, nas férias – da rede telemática, do arreio eletrônico que o liga ao patrão ou a sua firma. (Luiz Felipe de Alencastro, "A servidão de Tom Cruise, Metamorfoses do trabalho compulsório", Folha de S. Paulo, Caderno Mais!, 13/8/2000.)
7. A Nike é acusada de vender tênis produzidos em países asiáticos por mão-de-obra aviltada. Um levantamento feito junto a quatro mil trabalhadores de nove das 25 fábricas que servem à empresa na Indonésia revelou que 56% dos trabalhadores queixam-se de insultos verbais, 15,7% das mulheres reclamam de bolinas e 13,7% contam que sofreram coerção física no serviço. Esse estudo foi realizado sob o co-patrocínio da própria Nike. Outro levantamento, feito no Vietnã, mostrou que os trabalhadores ganham US$ 1,60 por dia e teriam que gastar US$ 2,10 para fazer três refeições diárias. Banheiros, só uma vez por dia. Água, duas vezes. O descumprimento das normas de uso do uniforme é punido com corridas compulsórias. Em outros casos, o trabalhador é obrigado a ficar de castigo, ajoelhado. A fábrica da localidade de Sam Yang trabalha 20 horas por dia, tem seis mil empregados, mas o expediente do médico é de apenas duas horas diárias. (Elio Gaspari, "O micreiro do MIT pegou a Nike", Folha de S. Paulo, 4/3/2001.)
8. "O trabalho danifica o homem" (declaração de Maguila, lutador de boxe, parodiando um conhecido provérbio).
9. O bom senso questiona: por que razão os homens dessas sociedades [...] quereriam trabalhar e produzir mais, quando três ou quatro horas diárias de atividade são suficientes para garantir as necessidades do grupo? De que lhes serviria isso? Qual seria a utilidade dos excedentes assim acumulados? Qual seria o destino desses excedentes? É sempre pela força que os homens trabalham além das suas necessidades. E exatamente essa força está ausente do mundo primitivo: a ausência dessa força externa define inclusive a natureza das sociedades primitivas. Podemos admitir a partir de agora, para qualificar a organização econômica dessas sociedades, a expressão economia de subsistência, desde que não a entendamos no sentido de um defeito, de uma incapacidade, inerentes a esse tipo de sociedade e à sua tecnologia, mas, ao contrário, no sentido da recusa de um excesso inútil, da vontade de restringir a atividade produtiva à satisfação das necessidades. [...] A vantagem de um machado de metal sobre um machado de pedra é evidente demais para que nela nos detenhamos: podemos, no mesmo tempo, realizar com o primeiro talvez dez vezes mais trabalho que com o segundo; ou então executar o mesmo trabalho num tempo dez vezes menor. (Pierre Clastres, A Sociedade contra o Estado, Rio de Janeiro, Livraria Francisco Alves, 1973.)
10. É realmente muito triste para mim, hoje em dia, saber que os pastores não conhecem essa tremenda verdade. E é doloroso pensar que eles continuarão, uivando como cães, a disputar o "meu" e o "teu", numa luta ferina e bestial. Continuarão a viver dilacerando-se uns aos outros e cuspindo sangue, tragicamente, em proveito de patrões que desconhecem. [...] Nosso sangue fervilhava no esforço, regava a terra, coagulava-se. E nós estávamos contentes. Como poderíamos desconfiar que o fruto de nosso sangue ia engordar as aves de rapina das cidades, luzidias e repousadas, em suas casas confortáveis? Cada um de nós, na mocidade, construía com vistas à velhice, sem saber que, numa sociedade como a nossa, a velhice, com ou sem olival, seria tragicamente desprezada pelos jovens! E cada um de nós entregava-se a esse demônio que derramava nos campos nossas energias, espalhando-as conforme seu capricho, tornando-nos felizes sem dilacerar assim nossa própria carne, esquecidos das calamidades e dos caprichos da natureza. (Gavino Ledda, Pai Patrão, Rio de Janeiro, Círculo do Livro, s.d.) [Padre Padrone é um romance de 1975, que deu origem ao filme dos irmãos Taviani, com o mesmo título. Trata da dura vida de trabalho do filho de um camponês da Sardenha.]
11. O argumento é conhecido, justo e internacional: por lei, as crianças devem estar na escola, e não trabalhando 12 horas por dia; empresários inescrupulosos recorrem ao trabalho infantil, pagando salários indecentes; portanto, é preciso uma lei para impedir essas injustiças. A questão é: qual lei? No caso brasileiro, a lei pode levar as crianças a perder o emprego e a não ganhar nada em termos de aprendizado profissional. Portanto, para que se cumpra a lei, os menores de 16 anos deverão ser despedidos. [...] A verdadeira alternativa, para muitos adolescentes, não é estudar ou trabalhar, mas trabalhar ou não. As famílias pobres precisam dessa renda, que a lei acaba confiscando. (Adaptado de Carlos A. Sardenberg, "Boas intenções que matam", O Estado de S. Paulo, 18/6/2001.)
Um comentário:
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